RELATOS DE BELZEBU A SEU NETO - DO TODO E DE TUDO - PRIMEIRA SÉRIE
G. I. Gurdjieff - 1176 páginas
85.86204-07-2
Na forma de um mito numa escala cósmica,
a intenção de Gurdjieff é mostrar como a vida humana
está, com regularidade, desenvolvendo-se mais vazia de significado.
Ele delineia para nós, com compaixão e freqüentemente
com humor, as causas da alienação do homem das fontes reais
da vida. A força de suas idéias e a nova esperança
que elas contêm, aparece quando Gurdjieff integra sua concepção
do homem numa ciência nova e universal, abarcando todos os campos
do pensamento e de esforços em cada período da história.
Os eventos, desde que esse livro foi pela primeira vez publicado em 1950,
apenas confirmam a opinião de um crítico, que na época
escreveu: A obra de Gurdjieff, sua obra prima, Do Todo e de Tudo, é
um monumento à criatividade e ao pensar humano.
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photo © Triangle
Editions, N. Y. |
G.
I. Gurdjieff
Os fragmentos incompletos que compõem a Terceira Série de
Gurdjieff são tirados principalmente do material da sua própria
vida. De ascendência grega e armênia, ele nasceu em Alexandropol,
perto da fronteira da Rússia com a Turquia supostamente em 1877.
A guerra turco-russa estava em curso, e, enquanto era ainda uma criança,
sua família mudou-se para a cidade de Kars, que tinha caído
nas mãos dos russos.
Desde o começo Gurdjieff distinguiu-se dos outros
meninos na escola por seu questionamento insaciável. Procurou orientação
de pessoas mais velhas entre as inúmeras seitas da região,
leu vorazmente e, em tenra idade, deixou seu lar em busca de homens mais
sábios ou irmandades que pudessem possuir chaves para o conhecimento
que tinha se tornado uma necessidade para a sua vida. Que tenha recebido
instruções de mestres espirituais do Oriente não
pode haver dúvida.
Durante vinte anos, até 1909, Gurdjieff esteve
buscando e viajando, preparando-se adequadamente, dirigido e influenciado
pelo que ele chama "o círculo interior da humanidade",
os portadores do conhecimento que buscava. Durante esse tempo tomou consciência
da tarefa que foi chamado a assumir: chamar a humanidade para um conhecimento
do significado da vida sobre a terra.
Em 1913 abriu esse trabalho para um pequeno grupo em
Moscou. Depois com a chegada da guerra, deslocou-se para Essentuki, Tíflis,
Costantinopla e finalmente para a França, onde reabriu seu Instituto
para o desenvolvimento harmonioso do Homem no castelo de Prieuré
perto de Paris.
A vida em cada um desses centros refletia a estrutura
da própria realidade, até o grau que podiam compreender
aqueles que tinham ido lá para trabalhar a fim de adquirir uma
consciência. Todas as condições estavam preparadas
para fazê-los sentir que participavam ao mesmo tempo tanto da vida
ordinária, onde uma pessoa tem de comprometer-se e encontrar o
seu próprio lugar, quanto de um outro mundo onde existe harmonia
e paz - um paradoxo que coloca cada um diante de sua própria verdade.
A vida como um todo adquiria assim um significado.
Em 1924 Gurdjieff já tinha preparado auxiliares
para a divulgação de seu método quando sua saúde
foi colocada em perigo por um acidente de automóvel. Isso imobilizou-o
por vários meses. Alunos que tinham vindo de todas as partes do
mundo foram embora e ele encontrou-se virtualmente sozinho, sem recursos
e incapaz de falar qualquer língua européia.
Achando impossível, sob essas circunstâncias,
manter a intensidade da vida necessária no Instituto e supondo
que, talvez, já tivesse desempenhado o seu papel, decidiu transmitir
diretamente em palavras o conhecimento que tinha recebido. Com esse objetivo
planejou as três séries de seus livros.
Começando em janeiro de 1925, escreveu continuadamente
até abril de 1935, quando parou completamente de escrever. Desde
então, e até sua morte em 29 de outubro de 1949, devotou-se
intensamente ao trabalho com alunos em Paris, ensinando-os individualmente
e em pequenos grupos.
Uma vez mais, levando em consideração
as condições impostas pela guerra, um padrão definido
de vida apareceu. Apesar dos regulamentos e dos racionamentos, as pessoas
descobriam uma maneira de chegar até ele todas as noites e desempenhavam
as várias tarefas relativas à vida dessa comunidade, quer
no que dizia respeito ao dinheiro necessário para o seu sustento
ou no que se referia à forma pela qual a ajuda deveria ser dada
para aumentar o número de pessoas interessadas em suas idéias.
Elas ouviam as leituras de Relatos de Belzebu a seu
Neto e Encontros com Homens Notáveis e a música que Thomas
de Hartmann compunha sob a força da inspiração de
Gurdjieff. Gurdjieff respondia às suas questões, dirigia
o seu trabalho sobre si mesmas e ensinava-lhes as danças sagradas
conhecidas como Movimentos.
TRECHO DO LIVRO
Capítulo Primeiro
O Despertar do Pensar
ENTRE todas as convicções que se formaram em minha "presença integral"
durante minha vida responsável, ordenada de maneira bem singular, há uma,
inabalável, segundo a qual todos os homens - qualquer que seja o grau de
desenvolvimento de sua compreensão e quaisquer que sejam as formas de
manifestação dos fatores que suscitam em sua individualidade ideais de todos
os gêneros - sentem, sempre e por toda parte sobre a Terra, a imperiosa
necessidade de pronunciar em voz alta, ou pelo menos mentalmente, toda vez
que empreendem alguma coisa de novo, uma invocação, compreensível para toda
pessoa, seja ela das mais ignorantes - invocação cujos termos variaram
segundo as épocas e que se formula hoje em dia por estas palavras: "Em nome
do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém".
É por isso que, no momento de abordar esta aventura totalmente nova para
mim - escrever livros -, começo eu também por esta invocação, que profiro em
voz alta, bem nítida, e mesmo, como diziam os antigos tulusitas, com uma
"entonação plenamente manifestada"; isto, é claro, na medida em que o
permitem os dados já formados em minha presença integral e fortemente
enraizados nela, quero dizer, estes dados que se constituem na natureza do
homem durante sua idade preparatória e que determinam mais tarde, durante
sua vida responsável, o caráter e a força vivificadora dessa entonação.
Tendo assim começado, posso estar absolutamente tranqüilo e deveria mesmo,
segundo as concepções que nossos contemporâneos se fazem da "moral
religiosa", estar plenamente assegurado de que, daqui em diante, em minha
nova ocupação, "tudo irá de vento em popa".
Enfim, começo assim; e, quanto ao resto, só posso repetir com o cego:
"Veremos!".
Antes de mais nada, ponho minha própria mão, e o que é melhor, a direita -
ela foi levemente machucada, em outros tempos, num acidente, mas, em
compensação, é bem minha e, em toda minha vida, nunca me traiu -, coloco-a
sobre meu coração, também meu próprio coração (não acho necessário me
estender aqui sobre a constância ou a inconstância dessa parte do meu Todo),
e confesso francamente que por mim não tenho o menor desejo de escrever; mas
me vejo obrigado a isso por circunstâncias independentes de mim, das quais
não sei ainda se são acidentais ou se foram criadas propositadamente por
forças estranhas: sei apenas que estas circunstâncias me obrigam a escrever,
não qualquer bagatela boa de ler para adormecer, senão grossos, e
importantes volumes.
Seja como for, começo...
Sim, mas começar com quê?
Ah! diabo! Vai voltar esta sensação tão estranha e tão desagradável,
experimentada faz três semanas, enquanto elaborava em pensamento o programa
e a ordem das idéias que tinha decidido propagar, sem saber tampouco com que
começar?
Só poderia ter definido essa sensação por estas palavras: "o medo de ser
submerso pela torrente de meus próprios pensamentos".
Para fazer cessar essa desagradável sensação, eu teria podido recorrer à
funesta faculdade que possuo como todo contemporâneo - já que ela se tornou
inerente a nós - de tudo "deixar para amanhã", sem sentir por isso o menor
remorso de consciência.
E poderia facilmente "deixar para amanhã", pois ainda tinha tempo diante de
mim; mas hoje, hélas! isso não é mais possível e, custe o que custar, "nem
que eu me arrebente", tenho de começar.
Mas, afinal de contas, com que começar?
Hurra!... Eureca!...
Quase todos os livros a cuja leitura tive acesso em minha vida começavam por
um prefácio. Portanto, será preciso, para mim também, começar por algo desse
gênero.
Digo bem "desse gênero", porque jamais, em toda minha vida, quase desde o
momento em que soube distinguir uma menina de um menino, nunca fiz nada,
absolutamente nada, como os bípedes meus semelhantes, destruidores dos bens
da Natureza; por isso devo eu agora - sou mesmo obrigado a isso por
princípio - escrever diferentemente do que o faria qualquer escritor.
Em lugar do prefácio de praxe, começarei, portanto, por uma simples
advertência.
Começar por uma advertência será muito sensato de minha parte, pela simples
razão de que isso não contradirá nenhum de meus princípios, sejam orgânicos,
psíquicos ou até mesmo "extravagantes". Ao mesmo tempo, isto será
completamente honesto, objetivamente falando, naturalmente, porque espero
com absoluta certeza, como aliás todos aqueles que me conhecem de perto, que
meus escritos façam desaparecer na maioria dos leitores, de uma vez por
todas - e não progressivamente como isso se passa para cada um, cedo ou
tarde -, todos os "tesouros" que eles possuem, tesouros transmitidos por
hereditariedade ou adquiridos por seu próprio labor, sob a forma de "noções
tranqüilizantes" que somente evocam imagens suntuosas de sua vida presente
ou ingênuos sonhos de futuro.
Os escritores profissionais começam ordinariamente suas introduções
dirigindo-se ao leitor com todo tipo de títulos pomposos e frases empoladas,
cheias de melosa ênfase.
Somente nisso seguirei o exemplo deles e começarei, eu também, por uma
dessas "frases", evitando, é claro, torná-la tão adocicada quanto aquelas a
que eles estão habituados e que manipulam para titilar a sensibilidade de
leitores mais ou menos normais...
Pois bem...
Meus mui queridos, mui honrados, mui decididos e certamente mui pacientes
Senhores, e minhas mui queridas, encantadoras e imparciais Senhoras...
Desculpem-me! ia esquecer o principal: e minhas nem um pouco histéricas
Senhoras!
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