Horus Editora   Horus Editora
Horus Editora

A VIDA SÓ É REAL QUANDO "EU SOU"A VIDA SÓ É REAL QUANDO "EU SOU" - DO TODO E DE TUDO - TERCEIRA SÉRIE
G. I. Gurdjieff - 216 páginas
85.86204-02-1

No fim de "Relatos de Belzebu a seu Neto" Gurdjieff escreveu que a Terceira Série de sua trilogia, DO TODO E DE TUDO, seria acessível apenas a leitores selecionados que tivessem assimilado o conteúdo das duas primeiras séries.
Como em todo o seu ensinamento, o objetivo de Gurdjieff nesta Terceira Série era "auxiliar o aparecimento, no mental e no sentimento do leitor, de uma representação verdadeira do mundo real em lugar do mundo ilusório que ele agora percebe". O livro coloca, de novo, de uma maneira intransigente, que leitores experimentados reconhecerão como exclusiva aos escritos de Gurdjieff, a questão do propósito da vida e do próprio ser do homem.













G. I. Gurdjieff
photo © Triangle Editions, N. Y.

G. I. Gurdjieff

Os fragmentos incompletos que compõem a Terceira Série de Gurdjieff são tirados principalmente do material da sua própria vida. De ascendência grega e armênia, ele nasceu em Alexandropol, perto da fronteira da Rússia com a Turquia supostamente em 1877. A guerra turco-russa estava em curso, e, enquanto era ainda uma criança, sua família mudou-se para a cidade de Kars, que tinha caído nas mãos dos russos.

Desde o começo Gurdjieff distinguiu-se dos outros meninos na escola por seu questionamento insaciável. Procurou orientação de pessoas mais velhas entre as inúmeras seitas da região, leu vorazmente e, em tenra idade, deixou seu lar em busca de homens mais sábios ou irmandades que pudessem possuir chaves para o conhecimento que tinha se tornado uma necessidade para a sua vida. Que tenha recebido instruções de mestres espirituais do Oriente não pode haver dúvida.

Durante vinte anos, até 1909, Gurdjieff esteve buscando e viajando, preparando-se adequadamente, dirigido e influenciado pelo que ele chama "o círculo interior da humanidade", os portadores do conhecimento que buscava. Durante esse tempo tomou consciência da tarefa que foi chamado a assumir: chamar a humanidade para um conhecimento do significado da vida sobre a terra.

Em 1913 abriu esse trabalho para um pequeno grupo em Moscou. Depois com a chegada da guerra, deslocou-se para Essentuki, Tíflis, Costantinopla e finalmente para a França, onde reabriu seu Instituto para o desenvolvimento harmonioso do Homem no castelo de Prieuré perto de Paris.

A vida em cada um desses centros refletia a estrutura da própria realidade, até o grau que podiam compreender aqueles que tinham ido lá para trabalhar a fim de adquirir uma consciência. Todas as condições estavam preparadas para fazê-los sentir que participavam ao mesmo tempo tanto da vida ordinária, onde uma pessoa tem de comprometer-se e encontrar o seu próprio lugar, quanto de um outro mundo onde existe harmonia e paz - um paradoxo que coloca cada um diante de sua própria verdade. A vida como um todo adquiria assim um significado.

Em 1924 Gurdjieff já tinha preparado auxiliares para a divulgação de seu método quando sua saúde foi colocada em perigo por um acidente de automóvel. Isso imobilizou-o por vários meses. Alunos que tinham vindo de todas as partes do mundo foram embora e ele encontrou-se virtualmente sozinho, sem recursos e incapaz de falar qualquer língua européia.

Achando impossível, sob essas circunstâncias, manter a intensidade da vida necessária no Instituto e supondo que, talvez, já tivesse desempenhado o seu papel, decidiu transmitir diretamente em palavras o conhecimento que tinha recebido. Com esse objetivo planejou as três séries de seus livros.

Começando em janeiro de 1925, escreveu continuadamente até abril de 1935, quando parou completamente de escrever. Desde então, e até sua morte em 29 de outubro de 1949, devotou-se intensamente ao trabalho com alunos em Paris, ensinando-os individualmente e em pequenos grupos.

Uma vez mais, levando em consideração as condições impostas pela guerra, um padrão definido de vida apareceu. Apesar dos regulamentos e dos racionamentos, as pessoas descobriam uma maneira de chegar até ele todas as noites e desempenhavam as várias tarefas relativas à vida dessa comunidade, quer no que dizia respeito ao dinheiro necessário para o seu sustento ou no que se referia à forma pela qual a ajuda deveria ser dada para aumentar o número de pessoas interessadas em suas idéias.

Elas ouviam as leituras de Relatos de Belzebu a seu Neto e Encontros com Homens Notáveis e a música que Thomas de Hartmann compunha sob a força da inspiração de Gurdjieff. Gurdjieff respondia às suas questões, dirigia o seu trabalho sobre si mesmas e ensinava-lhes as danças sagradas conhecidas como Movimentos.

.


TRECHO DO LIVRO

Eu sou... Em que então se converteu aquela sensação inteira da totalidade de mim mesmo, que eu experimentava antigamente assim que pronunciava estas palavras em estado de lembrança de si?

Será possível que essa aptidão interior, adquirida ao preço de tantas renúncias e automortificações de todo tipo, hoje, quando sua ação sobre meu ser é mais indispensável do que o próprio ar que respiro, tenha desaparecido sem deixar vestígios?

Não, não pode ser.

Com certeza existe outra coisa... ou então tudo, no mundo da Razão, é ilógico.

Não — o poder de fazer esforços conscientes e assumir um sofrimento voluntário ainda não se atrofiou em mim.

Todo meu passado e tudo que me aguarda exigem que eu seja, ainda.

Eu quero... ainda serei.

Tanto mais porque meu ser é necessário não só para meu egoísmo pessoal, mas para o bem de toda a humanidade. Meu ser é realmente mais necessário aos homens do que todas suas satisfações e toda sua felicidade atual.

Eu quero ser ainda... Eu sou ainda.

Pela insondável lei das associações do pensar humano, no momento de começar a escrever este livro que constituirá a Terceira Série, denominada instrutiva, de minhas obras, série que, aliás, será a última — e por meio da qual quero compartilhar com meus semelhantes, criaturas de Nosso Pai Comum, quase todos os segredos do mundo interior do homem que até agora permaneceram ignorados e dos quais tomei conhecimento acidentalmente —, acabam de ressurgir em meu consciente aquelas dramáticas reflexões que tinham se feito em mim, num estado próximo ao delírio, há exatos sete anos, neste mesmo dia e, parece-me até, nesta mesma hora.

Esse fantástico monólogo se impôs a mim em 6 de novembro de 1927, de manhã bem cedo, num dos cafés noturnos de Montmartre, em Paris, no momento em que, cansado até o esgotamento por meus "pensamentos negros", preparava-me para voltar para casa e tentar, uma vez mais, dormir, ainda que fosse um pouco.

Nessa época, minha saúde estava longe de ser boa, mas naquela manhã sentia-me particularmente mal; meu mal-estar devia-se ao fato de que durante as duas ou três últimas semanas não dormira mais do que uma ou duas horas por noite, e na noite anterior não havia podido fechar o olho.

A verdadeira razão dessas insônias e do desarranjo geral de quase todas as funções importantes do meu organismo era o fluxo ininterrupto de pesados pensamentos que fluíam por meu consciente sobre a situação aparentemente sem saída em que, de repente, me encontrava.

Para explicar, ainda que aproximadamente, em que consistia essa situação sem saída, devo dizer, antes de tudo, o seguinte:

Durante mais de três anos, submetendo-me a um constante esforço, havia trabalhado noite e dia nos livros que decidira publicar.

E isto havia me exigido um constante esforço, porque o acidente de automóvel que sofrera justo antes de começar a escrever essas obras tinha me deixado muito doente e debilitado. Nada, portanto, me facilitava qualquer trabalho ativo.

Contudo, eu não me poupara e, apesar do meu estado, tinha trabalhado intensamente, impulsionado por uma "idéia fixa" que se formara em meu consciente depois do acidente, quando me dei conta da situação em que me encontrava.

"Visto que não consegui, quando estava cheio de força e saúde, introduzir, de maneira prática, na vida dos homens as verdades que tinha elucidado para o bem deles, tenho de, custe o que custar, conseguir fazê-lo antes da minha morte, ao menos em teoria."

Tendo esboçado em linhas gerais, durante o primeiro ano, o material destinado à publicação, resolvi escrever três séries de livros.

Com o conteúdo da Primeira Série, queria conseguir destruir as convicções arraigadas no consciente e no sentimento dos homens, convicções, para mim, falsas e absolutamente contrárias à realidade.

Com o conteúdo da Segunda Série: provar que existem outros caminhos para a percepção e o conhecimento da realidade e indicar sua direção.

Com o conteúdo da Terceira Série: fazer conhecer as possibilidades que havia descoberto para entrar em contato com a realidade e fundir-se com ela à vontade.

.

.